Scan barcode
A review by nzagalo
O Tempo Reencontrado by Marcel Proust
5.0
Murakami e Bechdel estavam errados. Murakami considerou que para ler “Em Busca do Tempo Perdido” era necessário que alguma vez nos encontrássemos presos ou fugidos durante bastante tempo (no 3º tomo de "1Q84"). Já para Bechdel, as pessoas atingiriam a meia-idade quando se dessem conta que nunca iriam ler “Em Busca do Tempo Perdido” (em “Fun Home: A Family Tragicomic”). Não sei se foi para demonstrar que não tinham razão, apenas sei que era um título que me acompanhava há décadas, e a curiosidade de saber o que nele se encerrava era tremenda. Por outro lado, como disse na resenha do primeiro volume, há 10 anos que andava a tentar ler o primeiro volume, sem sucesso. Então porque li agora os 7 volumes, as 3200 páginas, em 2 meses? Não tenho explicação, mas arrisco a dizer que talvez tenha necessitado de chegar à meia-idade para ter a calma e tranquilidade necessárias à exigência da sua leitura.
Ao iniciar a leitura deste último volume ganhava uma consciência mais clara das motivações de Proust para encetar esta colossal obra, mas ao chegar a meio do livro as minhas explicações eram não apenas confirmadas, mas aprofundadas pelo próprio Proust que resolve dedicar 20 páginas a explicar o sentido da própria obra. Surpreendeu-me, porque não deixa espaço à interpretação, é muito claro e honesto. Proust arranja uma forma muito directa de explicar o sentido do texto, o sentido da arte, e o sentido de toda a sua vida. É um momento magistral, de reconhecimento do todo, em que as páginas se convertem num espaço-tempo de realidade, deixam de ser mero papel, deixam de ser mera história contada, e passam a fazer parte da nossa vida, enquanto realidade verdadeiramente vivida, porque num tempo resgatado por três mil páginas. É o pináculo de “Em Busca do Tempo Perdido”, em que percebemos o que é o "Tempo Perdido", e com o qual nos "Reencontramos". Muito sinceramente não pensei sequer que pudesse ser explicado, que houvesse mesmo essa necessidade, ou vontade por parte de Proust, mas ali de frente àquelas palavras, tudo ganha uma dimensão nova, uma conexão de enorme pureza com o autor, e que imbuído do facto de já não se encontrar entre nós, gera uma carga de enorme melancolia.
Escrevia então eu, antes de chegar àquele momento de rasgo elucidativo, que Proust vai amiúde deixando as suas notas sobre o valor da arte, nomeadamente a pintura, mas cada vez mais a literatura, da sua relevância enquanto registo e ênfase da realidade vivida de todos os dias. Nesse sentido percebe-se que Proust almejava com esta sua obra criar uma espécie de diário literário do seu mundo, para assim se poder dedicar a “pintar” imagens do mundo em que vivia, legando-as a quem viesse depois. Mas não é um registo de auto-biografia que se procura aqui, até porque se vamos sabendo muito sobre a psicologia do autor, nada se diz sobre os seus conhecimentos em concreto, o que sabemos dessa parte está apenas implícito no texto, não sendo atribuído ao narrador/personagem principal, Marcel, mas que sabemos pertencer a quem escreve, ou seja Proust.
Neste sentido quando se procura analisar a obra de Proust, em busca de chaves descodificadoras ou pólos de ênfase, podemos dizer que o principal será mesmo a relação do sujeito, do "Eu", com o mundo que o rodeia, a "Sociedade". Daí que o título da obra busque isso mesmo, a análise do tempo dessas relações, já que elas apenas existem no tempo. As memórias são assim relevantes, mas mais do que elas são o seu registo. Proust tinha receio de morrer sem terminar a obra, porque provavelmente sentiria uma necessidade de passar a registo aquilo que lhe ia no fluxo da consciência e memória, sabendo que depois de morrer, tudo se esvairia, e que a escrita era a única que poderia permitir que aquelas ideas, aquele tempo, continuassem vivos, além da própria vida.
Quando chego então ao miolo do livro, e Proust começa a dissertar sobre o que diferencia as memórias voluntárias das involuntárias, quando ele assume uma franqueza desmedida e se abre sobre o fundamento de todos aqueles tomos escritos, caio a seus pés, a minha sintonia era plena, e Proust propiciava-me ali um dos momentos mais belos de reconhecimento do devir. Acreditando ser aqui que desemboca toda a leitura, o sentido da "Busca", marco os excertos e explicações, que se seguem como potencial spoiler, a ler por quem já leu, ou tem muitas dúvidas que algum dia lerá, ou procura uma motivação para empreender a "tarefa".
------ Potencial Spoiler ---------------------------
Ler em http://virtual-illusion.blogspot.pt/2015/06/em-busca-do-tempo-perdido-volume-vii-fim.html
---- FIM SPOILER ---------------------------
Este volume final dá conta do quão obcecado Proust se tornaria, com a construção da sua obra, de como ela se tornaria no fundamento completo de toda a sua "raison d'être". Trabalhando apenas à noite, quando Paris dormia, para que não fosse incomodado, e num quarto com paredes isoladas por cortiça que impediam os ruído exteriores, para assim se imiscuir totalmente em introspecção, na pesquisa das memórias de si.
“Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que outra pessoa vê deste universo que não é o mesmo que o nosso.” p.217
Era a arte que Proust almejava, não um mero registo das suas memórias, voluntárias ou involuntárias. E assim se explica que a primeira página da "Busca" (de que transcrevo o primeiro parágrafo abaixo), tenha sido encontrada pelo biógrafo Jean-Yves Tadié, reescrita 12 vezes. Tadié diria que, teria ficado imensamente contente apenas com a primeira versão.
“Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n’avais pas le temps de me dire : « Je m’endors. » Et, une demi-heure après, la pensée qu’il était temps de chercher le sommeil m’éveillait ; je voulais poser le volume que je croyais avoir dans les mains et souffler ma lumière ; je n’avais pas cessé en dormant de faire des réflexions sur ce que je venais de lire, mais ces réflexions avaient pris un tour un peu particulier ; il me semblait que j’étais moi-même ce dont parlait l’ouvrage…” Primeira página do Volume 1, no original, 1913
“Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes, mal apagava a vela, os olhos fechavam-se tão depressa que não tinha tempo de pensar: “Vou adormecer.” E, meia hora depois, era acordado pela ideia de que era tempo de conciliar o sono; queria poisar o volume que julgava ter nas mãos e soprar a chama de luz; dormira, e não parara de reflectir sobre o que acabara de ler, mas tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto especial; parecia-me que era de mim mesmo que a obra falava…” Tradução de Pedro Tamen, 2003
Tudo isto faz deste livro um artefacto único, continuando a ser um romance, senão “o romance”. Porque não se confunda o fundamento desta obra, tão pouco a sua forma, com a sua extensão, comparando-se com obras seriadas de aventuras, como os, também, 7 volumes de “Harry Potter” de JK Rowland, ou os vários volumes de “As Crónicas de Gelo e Fogo” de George R. R. Martin.
“Em Busca do Tempo Perdido” não é um livro difícil em termos de enredo, e é verdade que assusta pela sua extensão, mas torna-se verdadeiramente difícil pela escrita imensamente delineada e trabalhada, mais particularmente na forma como Proust constrói parágrafos longos, fazendo uso de todas as formas possíveis de orações subordinadas, que obrigam a memória de curto prazo do leitor a trabalhar arduamente. Mas a sua leitura, a experiência que se constrói em nós e nos transforma, supera facilmente muitas daquelas viagens que sonhámos fazer e fizemos. A "catedral" que Proust sonhou um dia construir, emerge agora dentro de mim, com campanários que cintilam na lembrança de cada um dos seus personagens - Swann, Odette, Marcel, Gilberte, Oriane, Albertine, a Avó e a Mãe, a Sra. de Villeparisis, Vinteuil, Elstir, Berma, Bergotte, os Guermantes, os Verdurin, Charlus, Cottard, Morel, Rachel, Saint-Loup, Françoise ou Jupien.
Ler o texto com o potencial spoiler e formatação no blog - Ler em http://virtual-illusion.blogspot.pt/2015/06/em-busca-do-tempo-perdido-volume-vii-fim.html
Ao iniciar a leitura deste último volume ganhava uma consciência mais clara das motivações de Proust para encetar esta colossal obra, mas ao chegar a meio do livro as minhas explicações eram não apenas confirmadas, mas aprofundadas pelo próprio Proust que resolve dedicar 20 páginas a explicar o sentido da própria obra. Surpreendeu-me, porque não deixa espaço à interpretação, é muito claro e honesto. Proust arranja uma forma muito directa de explicar o sentido do texto, o sentido da arte, e o sentido de toda a sua vida. É um momento magistral, de reconhecimento do todo, em que as páginas se convertem num espaço-tempo de realidade, deixam de ser mero papel, deixam de ser mera história contada, e passam a fazer parte da nossa vida, enquanto realidade verdadeiramente vivida, porque num tempo resgatado por três mil páginas. É o pináculo de “Em Busca do Tempo Perdido”, em que percebemos o que é o "Tempo Perdido", e com o qual nos "Reencontramos". Muito sinceramente não pensei sequer que pudesse ser explicado, que houvesse mesmo essa necessidade, ou vontade por parte de Proust, mas ali de frente àquelas palavras, tudo ganha uma dimensão nova, uma conexão de enorme pureza com o autor, e que imbuído do facto de já não se encontrar entre nós, gera uma carga de enorme melancolia.
Escrevia então eu, antes de chegar àquele momento de rasgo elucidativo, que Proust vai amiúde deixando as suas notas sobre o valor da arte, nomeadamente a pintura, mas cada vez mais a literatura, da sua relevância enquanto registo e ênfase da realidade vivida de todos os dias. Nesse sentido percebe-se que Proust almejava com esta sua obra criar uma espécie de diário literário do seu mundo, para assim se poder dedicar a “pintar” imagens do mundo em que vivia, legando-as a quem viesse depois. Mas não é um registo de auto-biografia que se procura aqui, até porque se vamos sabendo muito sobre a psicologia do autor, nada se diz sobre os seus conhecimentos em concreto, o que sabemos dessa parte está apenas implícito no texto, não sendo atribuído ao narrador/personagem principal, Marcel, mas que sabemos pertencer a quem escreve, ou seja Proust.
Neste sentido quando se procura analisar a obra de Proust, em busca de chaves descodificadoras ou pólos de ênfase, podemos dizer que o principal será mesmo a relação do sujeito, do "Eu", com o mundo que o rodeia, a "Sociedade". Daí que o título da obra busque isso mesmo, a análise do tempo dessas relações, já que elas apenas existem no tempo. As memórias são assim relevantes, mas mais do que elas são o seu registo. Proust tinha receio de morrer sem terminar a obra, porque provavelmente sentiria uma necessidade de passar a registo aquilo que lhe ia no fluxo da consciência e memória, sabendo que depois de morrer, tudo se esvairia, e que a escrita era a única que poderia permitir que aquelas ideas, aquele tempo, continuassem vivos, além da própria vida.
Quando chego então ao miolo do livro, e Proust começa a dissertar sobre o que diferencia as memórias voluntárias das involuntárias, quando ele assume uma franqueza desmedida e se abre sobre o fundamento de todos aqueles tomos escritos, caio a seus pés, a minha sintonia era plena, e Proust propiciava-me ali um dos momentos mais belos de reconhecimento do devir. Acreditando ser aqui que desemboca toda a leitura, o sentido da "Busca", marco os excertos e explicações, que se seguem como potencial spoiler, a ler por quem já leu, ou tem muitas dúvidas que algum dia lerá, ou procura uma motivação para empreender a "tarefa".
------ Potencial Spoiler ---------------------------
Ler em http://virtual-illusion.blogspot.pt/2015/06/em-busca-do-tempo-perdido-volume-vii-fim.html
---- FIM SPOILER ---------------------------
Este volume final dá conta do quão obcecado Proust se tornaria, com a construção da sua obra, de como ela se tornaria no fundamento completo de toda a sua "raison d'être". Trabalhando apenas à noite, quando Paris dormia, para que não fosse incomodado, e num quarto com paredes isoladas por cortiça que impediam os ruído exteriores, para assim se imiscuir totalmente em introspecção, na pesquisa das memórias de si.
“Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que outra pessoa vê deste universo que não é o mesmo que o nosso.” p.217
Era a arte que Proust almejava, não um mero registo das suas memórias, voluntárias ou involuntárias. E assim se explica que a primeira página da "Busca" (de que transcrevo o primeiro parágrafo abaixo), tenha sido encontrada pelo biógrafo Jean-Yves Tadié, reescrita 12 vezes. Tadié diria que, teria ficado imensamente contente apenas com a primeira versão.
“Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n’avais pas le temps de me dire : « Je m’endors. » Et, une demi-heure après, la pensée qu’il était temps de chercher le sommeil m’éveillait ; je voulais poser le volume que je croyais avoir dans les mains et souffler ma lumière ; je n’avais pas cessé en dormant de faire des réflexions sur ce que je venais de lire, mais ces réflexions avaient pris un tour un peu particulier ; il me semblait que j’étais moi-même ce dont parlait l’ouvrage…” Primeira página do Volume 1, no original, 1913
“Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes, mal apagava a vela, os olhos fechavam-se tão depressa que não tinha tempo de pensar: “Vou adormecer.” E, meia hora depois, era acordado pela ideia de que era tempo de conciliar o sono; queria poisar o volume que julgava ter nas mãos e soprar a chama de luz; dormira, e não parara de reflectir sobre o que acabara de ler, mas tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto especial; parecia-me que era de mim mesmo que a obra falava…” Tradução de Pedro Tamen, 2003
Tudo isto faz deste livro um artefacto único, continuando a ser um romance, senão “o romance”. Porque não se confunda o fundamento desta obra, tão pouco a sua forma, com a sua extensão, comparando-se com obras seriadas de aventuras, como os, também, 7 volumes de “Harry Potter” de JK Rowland, ou os vários volumes de “As Crónicas de Gelo e Fogo” de George R. R. Martin.
“Em Busca do Tempo Perdido” não é um livro difícil em termos de enredo, e é verdade que assusta pela sua extensão, mas torna-se verdadeiramente difícil pela escrita imensamente delineada e trabalhada, mais particularmente na forma como Proust constrói parágrafos longos, fazendo uso de todas as formas possíveis de orações subordinadas, que obrigam a memória de curto prazo do leitor a trabalhar arduamente. Mas a sua leitura, a experiência que se constrói em nós e nos transforma, supera facilmente muitas daquelas viagens que sonhámos fazer e fizemos. A "catedral" que Proust sonhou um dia construir, emerge agora dentro de mim, com campanários que cintilam na lembrança de cada um dos seus personagens - Swann, Odette, Marcel, Gilberte, Oriane, Albertine, a Avó e a Mãe, a Sra. de Villeparisis, Vinteuil, Elstir, Berma, Bergotte, os Guermantes, os Verdurin, Charlus, Cottard, Morel, Rachel, Saint-Loup, Françoise ou Jupien.
Ler o texto com o potencial spoiler e formatação no blog - Ler em http://virtual-illusion.blogspot.pt/2015/06/em-busca-do-tempo-perdido-volume-vii-fim.html